Na vereda umbrosa vinda ter ao soturno aceiro que rastilhava através do seringal ubérrimo, Torquato de há muito esperava, acocorado, sob crises veementes, num misto de infrenes exortações masculinas e de íntimas revoltas contra o seu vilíssimo plano perpetrado e prestes a ultimar-se. Assemelhava-se a um gato selvagem à espreita da vítima incônscia : carecia de abater o incauto pervagante daquele atalho para cevar a fome sexual de muitos anos na pelanganosa estrutura de uma velha esclerosada, que era monopólio de outrem.
Amigo leitor, deixemos, por enquanto, o infame Torquato na sua desprezível tocaia, assim poderei fornecer elementos para que se entenda o monstruoso ardil.
O trecho acima é parte do romance DESERDADOS, escrito por Carlos de Vasconcelos e publicado no ano de 1921, por Leite Ribeiro & Maurilo, Rio de Janeiro. Na verdade, trata-se de uma raridade bibliográfica, o que é uma pena, pois é obra extremamente singular e que, certamente, merece ser conhecida, lida e difundida, não só pela ousadia da linguagem, arrebatamento das ações, assombro e surpresa das imagens, mas também pelo que apresenta de estupenda poesia e chocante tragédia. Dizer que a ação se desenrola na Amazônia não faz do livro algo especial. Entretanto, a forma de dizer constitui-se em rara novidade, chocante beleza, suave e dolorosa poesia. O homem apanhado no seu contato direto com aquele inferno verde, que, aliás , continua infernal. Ali, vamos encontrar o homem matamorfoseado em besta humana, em terrível e sanguinário lobisomem. O homem que mata sem medo, sem remorso, por motivos vis e de pequena fatura.
Na cena em destaque, Torquato arma tocaia para assassinar outro seringueiro de nome Juca (Conduru), simplesmente para se apossar sexualmente da companheira do infeliz. Torquato bestializa-se na fome sexual de muitos anos , já que naquele tempo a presença da mulher na Amazônia era algo raríssimo. E não pense o caro leitor que a mulher desejada, de nome Joana, era nova, bonita de formas, desejável. Não, nada disso. Tratava-se, no caso, de uma velha escrofulosa, esquelética e com maus dentes, sarnosa de timbres e antipática de atitudes.
Efetivamente, Torquato acerta Juca com um balaço no peito e ele cai da pirambeira que atravessava no meio da mata. Entretanto, quando corre para o sitio da vítima e diz que o companheiro sofrera um acidente fatal, Joana compreendera logo a mentira do assassino, mas temendo-lhe a ferocidade por ânsia erótica e ao mesmo tempo o leilão em que seria posta pelo dono do seringal logo que se divulgasse a notícia da morte do seu amásio, hesitava se devia dar-se ao embusteiro ou qual a maneira mais acerada de agir, sob tão críticas circunstâncias.
O fato é que Juca mesmo ferido acaba surpreendendo o facínora no momento da danação orgástica e tem início uma luta corporal cuja riqueza de detalhes deixa entrever a maestria do autor , bem como a estranheza do seu linguajar.
Por fim, o sangrento duelo termina com a morte dos contendores que despencam sobre um precipício. É que Conduru e Torquato haviam caído em um socalco do barranco, fisgados, com as facas empunhadas, o braço de um sustendo o lance brutal do outro que, trespassado, havia também embebido até o cabo o punhal oponente. Joana enlouquecera, transudada em sentinela maldita do crime...
Observe, paciente leitor, a linguagem ímpar do Sr. Vasconcelos, algo realmente diferente. O inusitado que consegue arrancar de tanta brutalidade e miséria humanas é, de fato, impressionante.
Selecionamos outros trechos espetaculares. Mas, por enquanto, fiquemos por aqui. Prometo ao leitor amável continuar em breve.Um fraterno abraço.
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