CINCO
MINUTOS
NON
TI SCORDAR DI ME !
Parte II
A BUSCA
Após o surpreendente e
voluptuoso encontro, a paz do moço já não mais existe. E aqui tem início o
segundo movimento da narrativa que vamos denominar de a busca, englobando os capítulos II, III, IV, V, VI, VII, VIII e
IX. A vida do jovem torna-se a procura vertiginosa de um retrato imaginário, a
busca frenética daquela visão sutil.
Passaram-se duas semanas desde o primeiro encontro, período
no qual o rapaz tomado por verdadeiro frenesi, praticou as maiores
extravagâncias visando localizar a misteriosa figura. Foi todos os dias a Andaraí no ônibus
das sete horas. Indagou de todos os passageiros e não
obteve a menor informação. Assim, o moço desesperava, pois estava
a braços com uma paixão de primeira força e de alta pressão, capaz de fazer
vinte milhas por hora. Lembrando que uma milha corresponde a mil e
setecentos quilômetros aproximadamente, se pode formar uma ideia daquela paixão
desesperada e interdita. O pobre sujeito já andava alucinado naquela busca
incessante e voraz. Na rua, quando saía, não via ao longe um vestido de
seda preta e um chapéu de palha que não lhe desse caça. E
nada.
Certo dia, estava o nosso apaixonado em um baile,
buscando reconhecer no meio da multidão de rostos femininos aquela mulher que
tanto procurava. Embevecido com aquela profusão de sorrisos e olhares, sente um
leque tocar-lhe o braço e uma voz a murmurar bem próximo: Non ti scordar di me! Imediatamente
o rapaz recolhe o olhar que dirigia ao grupo, lançando-o, agora, às pessoas que
estavam junto de si, na esperança de encontrar o objeto do seu desejo.
Horrorizado, descobre apenas uma velha que passeava pelo braço do seu
cavalheiro, abanando-se com um leque. Quando a velha falou, ele acabou
reconhecendo na sua voz o timbre doce e aveludado que ouvira duas
vezes. A primeira vez, no ônibus do Andaraí e, agora, ali no baile. Com
aqueles dois elementos, o leque e a voz, concluiu o moço que tinha
amado uma velha, tinha beijado a sua mão enrugada com delírio, tinha vivido
quinze dias de sua lembrança. O atordoamento do rapaz torna-se
flagrante. Ainda mais quando a velha senhora afirma a seu par, na saída, que
tinha uma filha que não gosta de bailes, embarcando em seguida num cupê, em
companhia de um vestido preto que a tratava por mamã.
Com a partida do cupê que não pode alcançar, o
rapaz retorna ao baile, desanimado, tendo como única esperança aquela senhora
idosa, através da qual pretendia adquirir informações mais precisas sobre
aquele vestido preto. Saber quem era a desconhecida, indagar
seu nome e a sua morada, acabar enfim com aquele enigma que lhe matava
de emoções violentas e contrárias. Daquela visão quase mística que lhe
surgira por duas vezes, guardava o jovem apaixonado um cheiro, o aroma
de sândalo e um som, uma voz de timbre doce e aveludado.
Note-se o predomínio dos sentidos, no caso olfato e audição, utilizados como
processos de captação e reconhecimento da realidade circundante, tendo como
alvo a mulher. Tal forma de perceber o mundo torna inequívoca a forte
sensualidade que emana do texto, fato que nos leva a questionar aquela
ingenuidade tão rebatida na obra de José de Alencar.
Aliás, a cena inicial do romance, no interior do ônibus,
aquele contato voluptuoso, aqueles lábios ardentes no ombro da moça, que
estremecia de emoção, são de uma sensualidade desvelada, vizinha do
gozo sexual. Aqui, o romantismo de Alencar é bem realista, sem qualquer traço
de ingenuidade. A atmosfera sensual é reforçada, inclusive, pelas considerações
do próprio narrador. O sândalo é o perfume das odaliscas de
Istambul e das huris do profeta, como as borboletas que se alimentam de mel, a
mulher do Oriente vive com as gotas dessa essência divina.
Voltemos ao nosso alucinado mancebo com suas emoções violentas e contrárias.
Mergulhado, ainda, no frenesi da procura desesperada,
resolve investigar os teatros. Busca aqui, ali, acolá e nada, neres de
pitibiriba.
Mas, de outra feita, entrando uma vez no teatro e passando a
revista costumada, descobre ele, finalmente, na terceira ordem, a mãe
da moça e junto da velha um chapeuzinho de palha com um véu preto rocegado, que
não deixava ver o rosto a quem pertencia. Tomado de tremenda euforia, o
jovem apaixonado faz de tudo para chamar a tenção da moça, arrastando cadeiras,
tossindo alto de propósito, deixando cair o binóculo, enfim, toda aquela
coleção de momices típica dos enamorados que buscam conquistar sua paixão. Fazia
ele um
barulho insuportável, para ver se ela voltava o rosto. Qual nada. A
plateia pediu silêncio, porém ela não se moveu, com a cabeça meio inclinada
sobre a coluna, em uma lânguida inflexão, parecia toda entregue ao encanto da
música. O moço tenta aproximação, encostando-se na mesma coluna e
balbuciando estas palavras: Não me esqueço! A moça estremece,
mas recuperando-se, cuida de abaixar, rapidamente, o véu. Diante daquela
atitude que toma como frieza, o jovem apaixonado revolta-se.
Ao final do espetáculo, a jovem estende-lhe a mão,
dizendo-lhe comovida: Não saberá nunca o que me fez sofrer e
foge, em seguida, deixando-lhe um lenço impregnado de sândalo e todo
molhado de lágrimas ainda quentes.
Agora, mesmo não sabendo quem é a
donzela, mesmo não vendo o seu rosto, mesmo não conhecendo nada a seu respeito,
recebera uma belíssima recompensa: um lenço que ele podia considerar como
uma relíquia
sagrada. Vale ressaltar, aqui, a primeira manifestação de fetichismo
que será tema recorrente na obra de José de Alencar. Estamos pensando
fetichismo no
sentido figurado, como adoração por alguém a quem se tem cega dedicação, uma
espécie de ideia fixa, como aquela que domina o narrador-personagem e também
como valorização exacerbada de algo que pertence ao ser amado.
No dia
seguinte, o rapaz recebe uma carta assinada tão-somente com a letra C, a mesma
letra que marcava o lenço resgatado no teatro. Em síntese, a carta dizia que uma
fatalidade a obrigava a se ocultar e a fugir. O sacrifício era
necessário exatamente porque o amava. Por fim alertava: Esqueça-me.
Diante daquela
fusão, difusão e confusão de emoções, o jovem atarantado resolve se retirar
para a Tijuca, pois não era possível que continuasse a correr
atrás de um fantasma que esvaecia-se quando ia tocá-lo.
Nove dias
depois, o moço retorna do seu retiro e recebe outra carta na qual C reclama da
sua ausência e anuncia que está de partida para Petrópolis. E é para lá que se
dirige a toda brida o nosso apaixonado. Em lá chegando, por intermédio de um
criado do hotel suíço, consegue descobrir o endereço da velha senhora e da
filha. Após muito esperar, a porta da residência é aberta e ele, finalmente,
recebido por sua grande paixão. Recebeu-me sem surpresa, sem temor,
diz o jovem apaixonado, naturalmente, e como se eu fosse irmão ou
marido.
Entre os
amantes trava-se um ardente diálogo amoroso, onde cada qual busca incutir a
força da paixão amorosa que dedica ao outro. A moça confessa, sem pejo, que a
maior felicidade para ela seria dar sua vida ao jovem varão. Entretanto,
paradoxalmente, afirma: tu não me deves amar. Tal postura da
moça acaba por deixar o jovem perturbado e comovido, diante
daquela situação incompreensível, daquele mistério constrangedor.
As
almas como as nossas quando se encontram, se reconhecem e se compreendem,
declara ela, em tom grave e triste. Entretanto, objeta que mais vale conservar uma doce
recordação do que entregar-se a um amor sem esperança e sem futuro.
Atônito, o rapaz não
consegue entender os fragmentos daquele discurso amoroso no qual a ideia de
morte também se faz presente. Arrebatada por imensa tristeza diz a jovem que deve
ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas encontrado, uma dessas
duas almas irmãs fugir deste mundo, e a outra viúva e triste, for condenada a
levar para sempre no seio uma ideia de morte. A exaltação com que falava tinha
se tornado uma espécie de delírio, sua voz, sempre tão doce e aveludada,
parecia alquebrada pelo cansaço da respiração
Assim, tomada por um forte
acesso de tosse, agitando-se convulsivamente, a moça tombou sobre o
peito do rapaz. Os dois amantes permaneceram por muito tempo naquela atitude,
tendo a moça recobrado a serenidade. Vale frisar que todo diálogo amoroso,
desde a entrada do jovem na casa, fora travado na penumbra à meia-luz, não
permitindo, assim, que o mancebo tivesse uma visão clara do objeto da sua
paixão. Agora, tomado de enorme euforia, o rapaz manifesta o ardente desejo de
ver aquela a quem não conhece.
Aqui, não se
pode deixar de fazer um parêntesis para chamar a atenção sobre a técnica
narrativa bastante apurada de José de Alencar. Estamos pensando no processo de
velamento do objeto amado, como forma de sustentar a ação romanesca,
imprimindo-lhe o ritmo desejado pelo autor, adiando, intencionalmente o
encontro final dos amantes e, no mesmo passo, instigar o processo de busca do
narrador-personagem. Tal procedimento revela uma consciência criadora bastante
sutil, deixando perceber o quanto Alencar era minucioso e exato nas suas
criações e que se a imaginação às vezes tomava de assalto a pena do romancista,
o escritor logo assumia o comando, crestando-lhe as asas. É que os arroubos
alencarianos tinham endereço certo, isto é, função específica nas suas obras.
Lembramos, aqui, um episódio do capítulo IV que resvala para o cômico, se a
situação do personagem não fosse um tanto quanto trágica. Estamos pensando
naquela cena em que o narrador-personagem busca, desesperadamente, chamar a
atenção da mulher amada que se encontrava no interior de uma casa em
Petrópolis. Sem atinar com o que fazer, resolve cantar um trecho da Traviata,
de Verdi, que tinha relação direta com o seu amor. E foi então que cantou,
aliás, assassinou aquela linda romanza. Na certeza de que era um cantor
desastrado, confessa ele: os que me ouvissem tomar-me-iam por algum
furioso, mas ela compreenderia. Isto era o que importava. È como se o
autor também quisesse dizer que, apesar de discrepante, aquela cena se mostrava
eficaz, pois permitia a continuidade da busca e, no mesmo passo, da narrativa.
Diz o
narrador-personagem dos expedientes, cada qual mais extravagante,
que sua imaginação inventou, a elaboração tenaz a que se entregava
o seu espírito para descobrir um meio de dizer-lhe que eu estava ali e a
esperava. Por fim, resolvera cantar, exatamente o trecho da ópera de
Verdi que tem ligação direta com seu caso amoroso e serve de bordão ao romance: Non
ti scordar di me.