domingo, 25 de dezembro de 2016

CINCO MINUTOS - NON TI SCORDAR DI ME !

CINCO MINUTOS
NON TI SCORDAR DI ME !

Boa tarde, generoso leitor!
Antes de qualquer coisa, um feliz Natal!
Hoje cuidaremos de um escritor deveras famoso, mas cuja leitura e análise da obra por parte da crítica se fez de forma apressada, cristalizando algumas conclusões equivocadas que se transformaram em verdades difundidas. Aqui, se pretende ou quando menos, se propõe uma espécie de revisão de José de Alencar, sobretudo aquele dos primeiros romances. Por se tratar de matéria extensa, faremos a exposição em três etapas, visando não fatigar nosso paciente leitor. Vamos lá!
PARTE I
            Trata-se aqui do primeiro romance escrito por José de Alencar, Cinco Minutos, e que apareceu nas páginas do Diário do Rio de janeiro, no ano de 1856, sendo a primeira edição em livro levada a efeito em 1860.

                                                                    JOSÉ DE ALENCAR
                                                                                                                                                        IMAGENS DO GOOGLE

            Estruturalmente, a narrativa comporta dez capítulos curtos, indicados por algarismos romanos. A trama desenrola-se na cidade do Rio de Janeiro, provavelmente, no ano de 1854, já que o narrador-personagem, vivendo em 1856, afirma que vai contar uma história curiosa que ocorreu há mais de dois anos. Não se pode esquecer incursões a Nápoles, Alemanha, França e Grécia.
  Em síntese, o pequeno livro cuida do romance entre Carlota e o narrador-personagem, iniciando-se com um encontro fortuito e terminando com um feliz casamento realizado em Florença, na Igreja de Santa Maria Novela. Retornando ao Brasil vão habitar, na quebrada de uma montanha um lindo retiro, um verdadeiro berço de relva suspenso entre o céu e a terra por uma ponta de rochedo. Entretanto, antes de atingir tal estado de graça, amor e paz, nossos heróis tiveram que enfrentar duríssimas provas, encontros, desencontros e, sobretudo, a doença de Carlota.
            Os espaços públicos e seus logradouros vão constituir o palco onde transitam as personagens no desenrolar da trama romanesca. Largo do Rocio, atual praça Tiradentes, Engenho Velho, hoje Grande Tijuca, Glória, Andaraí e também Petrópolis.
            Os personagens principais são Carlota e o próprio narrador, que formam o casal de apaixonados. Contamos, no mesmo passo, com a participação de figuras menores. Uma velha que passeava pelo braço de um inglês, franco e cavalheiro, um criado de fisionomia sisuda, D..., a prima com quem dialoga o narrador em alguns momentos, Dr. Valadão, velho médico que sabia ler o corpo humano como um livro aberto, o dono de um cavalo, um velho pescador e outro homem. 


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            O cenário principal é a cidade do Rio de Janeiro, possivelmente, no ano de 1854, quando a cidade já ganhara a iluminação a gás, reinava D. Pedro II, a Rua do Ouvidor catalisava todo bulício da Corte, concentrando as maiores e mais importantes casas de comércio e o incansável Barão de Mauá procurava desenvolvê-la a todo transe. Também se procedia à reforma do ensino primário e secundário, com a edição do Decreto 1.331-A, trazendo a rubrica de sua Majestade Imperial e sob os auspícios do Sr. Ministro de Estado dos Negócios do Império, Conselheiro Luiz Pereira do Couto Ferraz. Alguém já disse que aquele Rio Imperial era uma verdadeira esquina do mundo. Mas, a crise política e econômica já dava os seus primeiros e graves sinais.
            O móvel da narrativa é um encontro fortuito que gera uma espécie de amor que não se extingue, apesar dos obstáculos que vai enfrentar. Assim, o personagem-narrador, que aqui se confunde com o personagem central, será o organizador e o condutor da narrativa, estruturando o universo ficcional. Será ele o regente sob cuja batuta os demais instrumentos irão executar o arranjo romanesco. Trata-se, portanto de uma narrativa de semiotização do personagem, como será demonstrado mais adiante.
            A essa altura cumpre esclarecer que estamos utilizando os critérios teóricos elaborados por Anazildo Vasconcelos da Silva, no excelente livro Semiotização Literária do Discurso, publicado no ano de 1984, pela Editora Elo, no Rio de janeiro.
            Colhendo as lições daquele ilustre mestre do qual tivemos a honra de ser discípulo, nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando o personagem, através de sua dinâmica subjetiva, investe semiologicamente o discurso narrativo, ocorre a narrativa de semiotização do personagem. Aqui, semiotizar equivale dizer “dar sentido a partir de “. Integrando-se ao fio narrativo, a dinâmica do personagem passa a ser a imagem estruturante do mundo ficcional, submetendo o espaço e o acontecimento. Como consequência é a dinâmica subjetiva do personagem que dá sentido ao acontecimento e, no mesmo passo, fundamenta o espaço narrativo, realizando-os como experiência pessoal. Voltemos ao livro de Alencar.
            Objetivando levar a efeito nossa leitura, vamos dividir o romance em três movimentos. O primeiro movimento será representado pelo capítulo I. O segundo movimento será sustentado pelos capítulos II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX. E o terceiro movimento atualizado pelo capítulo X. Trata-se, portanto, de uma narrativa bastante linear na qual os movimentos estão a indicar, inequivocamente, início, meio e fim, como naquelas narrativas simples que assentam na oralidade. O próprio narrador vem confirmar nossa assertiva quando afirma que é uma história curiosa a que vou lhe contar, minha prima. Exatamente a partir daí tem início a trama romanesca.
O ENCONTRO
Ao primeiro movimento, constituído, exclusivamente, pelo capítulo I, vamos denominar o encontro e é nele que se dá a apresentação de uma misteriosa mulher que será a mola propulsora da narrativa. Vamos surpreendê-la na parte traseira de um veículo coletivo que trafegava do centro da cidade, mas precisamente do Largo do Rocio com destino ao Andaraí. Seriam seis horas da tarde, portanto, quase noite. Na verdade, já era noite, pois o narrador-personagem perdera o ônibus das seis, só conseguindo embarcar no das sete. Na forma de costume foi sentar-se ao fundo do carro, a fim de ficar livre das conversas monótonas. No entanto, um monte de sedas já ocupava aquele espaço, acomodando-se para facilitar nosso herói que se sentiu um tanto quanto à vontade com a aparente receptividade daquela sutil presença feminina. O seu instinto femeeiro nos é revelado no momento em que o narrador, sem qualquer constrangimento, afirma em tom de picardia que ele prefere sempre o contato da seda à vizinhança da casimira. Sentindo-se magnetizado por aquela encantadora e misteriosa figura, emprega o rapaz todo esforço para desvendá-la. Assim, seu primeiro cuidado foi ver se conseguia descobrir o rosto e as formas que se escondiam naquelas nuvens de seda e de rendas. Infelizmente, era impossível. Além da noite estar escura, um maldito véu que caía de um chapeuzinho de palha não deixava a menor esperança ao aflito moço.
            Já um tanto quanto resignado, o rapaz deixa seu pensamento vagar pelo mundo da fantasia. De repente, sente o contato suave de um outro braço que parecia macio e aveludado como uma folha de rosa. É que, para grande surpresa do rapaz, o contato físico se foi estreitando, como se ele estivesse sentado junto a uma mulher que já o amava. A pressão entre os corpos torna-se mais forte. Ele sente o ombro dela aconchegar-se de leve ao seu peito. Em virtude daquele contato voluptuoso, o rapaz colou os lábios no ombro da moça que estremecia de emoção. Estabelece-se entre os dois jovens uma espécie de colóquio amoroso marcado pelo silêncio e, sobretudo, por contatos excitantes e breves nos quais as mãos e os lábios expressam todo magnetismo da atração recíproca. Não se deve deixar passar impunemente o bafejo suave de aroma de sândalo que exala do corpo feminino. Aroma que aspirado voluptuosamente pelo rapaz infiltra-se-lhe na alma como um eflúvio celeste. Estava nosso herói como que embriagado e mergulhado em profundo devaneio, uma espécie de êxtase erótico, quando o ônibus parou e uma senhora ergueu-se e saiu. O rapaz sente, ainda, um aperto na mão e vê uma silhueta feminina passar diante dos seus olhos no meio do ruge-ruge der um vestido. Era a mulher misteriosa que abandonava o veículo abruptamente. A sorte do moço estava lançada – Non ti scordar di me !


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

... E O RIO DE JANEIRO CONTINUA LINDO...


Mirando, bestializado, a extravagante aquarela político-econômica pintada no céu azul do Rio de Janeiro por sinistras manoplas, só nos resta rir, rir às bandeiras despregadas. Estamos vivendo uma tremenda ópera bufa com atores canastrões cujo desempenho torna-se cada vez mais mesquinho, em que pese os anos de exercício na politicagem profissional.
            O Rio de Janeiro está falido.
            Não pode existir sentença mais estapafúrdia e mentirosa. Fala-se do segundo maior estado brasileiro como se falasse do Burundi. Assim, só nos resta rir. Vamos rir. Rir muito, pois o riso é também uma filosofia. Aqui, o riso pode ser a salvação. E em se tratando de política, seja em solo carioca, fluminense ou brasileiro, o riso tem força de opinião. Com nossos políticos só três soluções – rir, caçar ou cuspir. Sejamos educados e filósofos, vamos rir.
            Aqui está ao meu lado, chorosa, humilhada, envergonhada, tripudiada, nossa Carta constitucional, a “Constituição Cidadã”, declarando, com ingenuidade, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza; declarando que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei; declarando que ninguém será submetido a tratamento desumano e degradante; declarando que é livre a manifestação do pensamento.
            Mas, aqui, não há igualdade, sobretudo, perante a lei. Nada mais desigual. Sabemos muito bem como funciona nossa justiça – farinha pouca, meu pirão primeiro. E os magistrados que o digam.
            E lá vai o consciente servidor, sob o manto régio, ainda que sobejamente maculado da nossa amiga “Constituição Cidadã”, fazer valer o seu direito garantido por lei e tome lá, por mando também da lei, borracha no lombo e gás de pimenta na cara. De par com ele, lívida de vergonha, gemendo e chorando convulsa a Carta Magna deixa escapar com se fosse um suspiro derradeiro – E vivemos num Estado Democrático de Direito!
            É por isso talvez que ninguém acredite mais nesse negócio de Democracia, muito menos em Direito. É que ninguém crê em ti, oh! Constituição Cidadã! Os ministros que te defendem, os jornais e livros que te citam, os jurisconsultos que te comentam, os professores que te ensinam, os padres e pastores que falam em ti, aqueles mesmos cuja única profissão era acreditar em ti, todos, na prática cotidiana, te renegam e ganhando o próprio pão em teu nome, te achincalham e te menoscabam.
            E apesar de tudo isso, esta política corrupta, desumana, infiel aos seus princípios, vivendo no perpétuo desmentido de si mesma, desautorizada, apupada, amaldiçoada, xingada, pede e exige, ainda, sem a menor desfaçatez, a uma multidão inumerável de sofredores, humilhados e ofendidos, a salvação da coisa pública.

            É trágico, patético, o cúmulo da covardia e da falta de caráter. É como pedir a um palhaço de pernas e braços quebrados mais uma cambalhota ou um chiste.   
      

sábado, 20 de agosto de 2016

O Doido de Moçambique


O ilustrado leitor, certamente, já ouviu falar de Tomás Antônio Gonzaga, autor do famoso livro Marília de Dirceu que o tornou no século XVIII o poeta mais popular em língua portuguesa, excetuando-se Camões.
Hoje, o livro anda um tanto quanto esquecido, sem que diminua a posição sólida e definitiva que ocupa o autor no panorama geral da literatura brasileira.
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Na verdade, Tomás Antônio Gonzaga nasceu em Miragaia, Portugal, no dia 11 de agosto de 1744, portanto, era português.  Mesmo assim, como bem salientou Eduardo Frieiro, no genial livro O Diabo na Livraria do Cônego, Gonzaga tornou-se uma glória brasileira, pertence-nos, pois é criação nacional como personalidade revelada pela história.  A imagem legendária do apaixonado cantor de Marília formou-se no Brasil na consciência das gerações românticas nacionais.  Gonzaga é nosso, afirma o grande crítico mineiro, pois foi aqui, em terras brasileiras, que viveu alguns dos melhores anos de sua existência.  Foi em Vila Rica, hoje, Ouro Preto, que conheceu seu grande amor Maria Doroteia Joaquina de Seixas, uma sinhazinha de 19 anos, a mais formosa moça do lugar.

E ele já quarentão viu naquele anjo de candura e beleza a possibilidade total de realizar seu sonho de felicidade tranquila e doméstica.  E foi assim apaixonado que transformou Maria Doroteia em Marília, a sua Marília de Dirceu, sendo este último nome seu pseudônimo artístico.
É meu caro leitor, só que o destino não foi generoso com aquele juiz casquilho e poeta galanteador.  Marília acabou não sendo de Dirceu, pois Gonzaga foi preso e desterrado para Moçambique, nas vésperas de seu casamento, acusado de ser participante ativo da malfadada Inconfidência Mineira de 1789.
Por isso, Silvio Romero, no tomo segundo da sua monumental História da Literatura Brasileira, afirma que Tomás Antônio Gonzaga era um talento lirico, alegre, naturalista, um homem expansivo, algum tanto sensual, capaz de amar loucamente, entusiasta pelo espírito de sua querida Marília.  Mas, sobretudo, entusiasta pelo seu regaço, por suas faces, louco por provar as delicias que o fariam renascer um homem novo.
Como bem esclarece Frieiro, Maria Dorotéia roçava pelos 19 anos de idade.  Era o ideal: uma mulherzinha em flor. Gonzaga supunha-se em boa forma, com as melhores disposições para realizar a união.  Com exaltação da própria masculinidade, típica do macho que ronda sua fêmea, declara sem maiores rodeios, na primeira lira dedicada a Marília o seguinte: 

Eu vi o meu semblante numa fonte
dos anos inda não está cortado,
os pastores que habitam esses montes,
 respeitam o poder do meu cajado.

Com tal destreza toco a sanfoninha 
que inveja me tem o próprio Alceste
do som dela concerto a voz celeste
nem canto letra que não seja a minha.

Mas, a aspereza do governo colonial ceifou o sonho do poeta apaixonado.
Gonzaga foi condenado a degredo, sendo sua pena comutada em desterro, por dez anos em Moçambique, África. 
Onde, segundo consta no livro do ilustre Silvio Romero, a página 133, Gonzaga teria falecido louco.
Não, amigo leitor, em que pese o indiscutível saber e a sólida cultura do Sr. Romero, Gonzaga não morreu louco e não perdeu o juízo em momento algum da sua existência.
Na verdade, criou-se uma espécie de lenda e torno do desditoso poeta, segundo a qual ele ia perdendo a razão ou chegou mesmo a perdê-la, em consequência da história tocante que se formou em torno do seu amor.  De acordo com essa história, Gonzaga teria vivido alguns anos no desterro africano, mergulhado em morna tristeza, enfermo e meio louco, só amparado na desgraça por um comerciante de Moçambique, Alexandre Roberto Mascarenhas.  
A verdade é bem outra, paciente leitor, degredado para Moçambique, Gonzaga lá chegou em 1792 e já no ano seguinte, 1793, casa-se com Juliana de Souza Mascarenhas, moça de 19 anos, filha do amigo rico Alexandre.  Contava o poeta 49 anos de idade.
Já em 1800 é considerado uma das principais pessoas de Moçambique, onde exerceu a função de Procurador da Coroa e Juiz da Alfândega, elevado cargo que ocupou até a sua morte, ocorrida no ano de 1810, aos 66 anos de idade.
Adelto Gonçalves, no profundo e belíssimo livro  Gonzaga, Um Poeta do Iluminismo, afirma que, ao falecer, deixava ele a mulher Juliana de Souza Mascarenhas, de 35 anos, e os filhos Ana de 15 e Alexandre com 1 ano incompleto.
Os fatos arrolados pelo brilhante pesquisador na sua obra fundamental, permite afirmar que Gonzaga ao final da vida, podia ser considerado um homem realizado, tendo alcançado no exílio o seu ideal familiar e burguês, pois casou, teve filhos, engordou na abastância e morreu rico e bem conceituado, no dizer de Eduardo Frieiro.
Quanto a participação de Gonzaga na conjuração mineira, as pesquisas nada dizem de definitivo.  Se realmente era conjurado, seu papel terá sido ínfimo, pois nos altos da devassa são por demais frágeis os indícios de sua culpa.  Na verdade, foi vítima de acusações maldosas de invejosos e inimigos que fizera no exercício das suas funções.  Em última instância, foi vítima sim de uma prisão injusta e uma condenação brutal, por um governo colonial extremamente leviano, truculento e repressor.  Doido não. 
Despeço-me do paciente leitor, não sem antes recomendar a leitura dos magistrais livros do Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do Cônego, e do Adelto Gonçalves, Gonzaga um poeta do Iluminismo.  Este último uma sólida e definitiva biografia do cantor de Marília de Dirceu, o Doido de Moçambique, aquele que foi sem nunca ter sido.  
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Um fraterno abraço.

Jaime





terça-feira, 9 de agosto de 2016

UM AUTOR MACROCÉFALO III

Boa noite, paciente leitor.
Nem só de literatura vive o homem, mas também de feijão e este vai pela hora da morte. Um quilinho dez pratas. Até mesmo o feijão conseguiram tirar do brasileiro. Os políticos, os homens do poder acabaram com o país. Hoje o Brasil é nau à deriva. Somos motivo de riso e chacota no concerto das nações. O três poderes se locupletaram e aquela luz que havia no fim do túnel , a justiça, apagou-se. É o caos. Estamos DESERDADOS como aqueles personagens do romance homônimo do Sr. Carlos de Vasconcelos que aqui estamos analisando e comentando.
É de bom alvitre destacar que o estranho livro não trata apenas da sexualidade desembestada e animalesca que campeava nos seringais da Amazônia no tempo do famigerado ciclo da borracha, verdadeiro meteoro na economia brasileira. 
Não, perplexo leitor, o romance também versa sobre as relações de poder, denunciando de forma arrojada o martírio do sertanejo cearense nos seringais do inferno verde.
Ali, improvisa-se a caravana dos retirantes, forma-se a procissão dos desesperados, tomando o rumo ignoto da terra prometida, Amazônia, dos tesouros decantados pelos paroaras, o leite suculento da borracha, que vale ouro e dá felicidade e fortuna...
Mas, ao fim da caminhada só encontravam mesmo a morte, a miséria e a doença.  Mais um sonho de futuro que o Brasil não realizou.
Ao amigo leitor sugiro o contato direto com o livro.
Carlos de Vasconcelos, nasceu em 1881, no Ceará, na cidade de Granja e faleceu no Rio de Janeiro, aos 42 anos de idade, no ano de 1923.  Quando contava 18 anos seguiu para o Amazonas, lá chegando em 1899, para desempenhar a função de engenheiro geográfico.
No ano de 1902, vamos encontra-lo no Rio de Janeiro, completando seus estudos na famigerada Escola Politécnica, sendo agraciado com a carta de engenheiro civil e bacharel em ciências jurídicas e matemáticas.
Seguiu novamente para o Amazonas, onde permaneceu por dois anos nas cercanias do rio Yaco, provavelmente aplicando seus conhecimentos técnicos na divisão e legalização das terras.
Findo aquele prazo está de volta ao Rio de Janeiro para defender direitos de constituinte quanto a propriedade de terras na zona do Acre e Alto Purus.
Com projeto de criação do estado do Acre, apresentado na câmara, Carlos de Vasconcelos, promoveu luta acirrada pelos jornais, seguiu depois para a Europa e para os Estados Unidos, fixando-se por fim no Rio de Janeiro.
Sabe-se que defendeu a tese da americanização de forma exacerbada como era de sua témpera.
No Rio de Janeiro fundou uma industria que lhe garantiria o futuro, mas a explosão de uma autoclave em sua fábrica causou-lhe a morte prematura.
Dele disse o nem sempre justo mas genial Agripino Grieco , em sua Evolução da Prosa Brasileira, que se tratava de um autor macrocéfalo que possuía bastante talento. Sem nos aprofundarmos na intenção do "macrocéfalo" , destacamos aquele "bastante talento" que vindo da pena ácida de Grieco já é um louvor sem par.

Ao querido leitor peço a atenção para a próxima postagem.
Fraterno abraço,

Jaime



quarta-feira, 22 de junho de 2016

UM AUTOR MACROCÉFALO II

 Como vai, paciente leitorCertamente, um tanto quanto perplexo e deveras indignado com a tal história de Trancoso sobre a falência do Estado do Rio de Janeiro. Perde-se o controle da situação em virtude dos sistemáticos desvios do dinheiro público. Não revoltado, leitor. Roubo não. Eles não roubam. São gente de bem, cidadãos probos e honrados, a glória nacional. Perde-se a vergonha e o respeito pela população e surge a solução descarada - o Estado do Rio de Janeiro pede falência. Não se tem dinheiro para o pão do servidor público, mas sobra para bancar os jogos olímpicos.Nada contra o evento, mas quem não tem competência não se estabelece. É a loucura tomando conta do Estado, o país já virou hospício ou circo, sei lá.
    Falando em loucura, benevolente leitor, largamos a velha JOANA enlouquecida, velando os corpos de TORQUATO e JUCA. Mas, a tragédia da velha escrofulosa não fica por aí. Não mesmo. Outro seringueiro, de nome TIAGO, bem jovem, cuida de sequestrar e se apropriar da desgraçada velha, conduzindo-a para o interior da floresta.
    Ali se haviam homiziado o seringueiro faminto de longa data e a imbecil anestesiada para quaisquer ulteriores emoções fisiopsíquicas. Era uma gruta favorável à ceva do raptor e Tiago ali se ocultou, despercebido dos perseguidores... E como numa súbita irrupção estardalhosa o orgasmo monstruoso o empolgasse, ele se atirou, com a bruteza dos irracionais ao ósseo pasto esclerosado da idiota e tonitruou com a violência dos testudos e felinos. Joana nem sequer se lhe mostrava indiferente e ele nos patológicos arreganhos crescentes, foi rangendo os dentes e crispando as unhas, atritando com fereza o engelhamento estrutural  da repulsiva megera sucuba... Desusada excitabilidade aprestava-o a todas as fúrias mórbidas em semelhante carcaça decrépita e insensível e ele capridesco e insaciado, a cada vez mais a exortava a compartilhar de seus gozos para deles fruir melhor sabor. E passou dessas marradas e apertões violentos a fúria sanguinária das onças-pintadas, que dilaceram para aumentar, nos paroxismos da dor, a brutalidade do prazer, mordia as apingentadas tetas da desgraçada, unhava-lhe o torso, a cintura e as nádegas, friccionava-lhe as pantorrilhas e as plantas, como para desemperrar a dormência senil da esclerose.
    Num desses desregramentos lascivos, atritou-lhe bem a língua na abóbada palatina e como lhe sentisse os pródromos de uma vitalidade restaurante, abalou-a com mais violentos empuxões e com ferocíssimas raspagens das unhas à altura dos rins decrépitos... E como com semelhante dor multiforme a velha se exacerbasse, a sua única lasca de dente feriu a língua do agente e ele, exaltado e doido, num frenesi de libidinagem, como que se exasperou em procurar naquela boca alguma outra lasca abrolhante para a patologia das sensações... Decepcionado, todavia, ele mordeu a língua trêmula de Joana e lhe acordou de repente uma violência satânica de maracajá em estertores lúbricos. E numa suprema concentração de forças, ela premiu contra as desdentadas mandíbulas a língua de Tiago e, embebido todo o canino pontiagudo na polpa flácida, dilacerou-lhe vasos e veias, sob uma dor terrível e mortal. 
    Fisgado pela língua, que se esfrangalhava entre borbotões de sangue, aos esforços de arrancá-la ao dente danoso, o homem enlouquecia. Escalavrou com as unhas ríspidas toda a esquelética estrutura da megera e não a demoveu um instante da danação tremenda.
    A farta hemorragia produziu-lhes o grudamento das duas caras, sob uma aderência hermética tirante a betume e, então, nos estertores morbosos, ei-lo que nas vascas da asfixia espalma as duas mãos fortes pela cara de Joana como para descerrar-lhe ainda os queixos e impotente e louco, rasga-lhe as bochechas e arranca-lhe com os dois dedos médios os olhos esbugalhados na morbidez da dor e da luxúria!

    Impossível permanecer indiferente diante de cena tão macabra, patética e chocante. Cena de cinema, tal a sucessão veloz e precisa das imagens. O tecido narrativo explode na precisão descritiva e na força verbal alucinante. A estranheza do vocabulário acaba criando uma dimensão fantástica, onde a brutalidade e a fúria animalescas explodem sem qualquer controle ou menor vexame. A linguagem desabusada, singular, inusitadamente perfeita, transmite-nos as sensações dos personagens, de forma inequívoca. Os adjetivos cortam feito facas afiadas fazendo sangrar expressões sinistras e de estupidificante morbidez. A hemorragia física dos personagens corresponde uma espécie de hemorragia verbal, uma sangria vocabular desatada. 
   Pois é, paciente leitor, não há como negar os méritos do Sr. Carlos de Vasconcelos. Escritor singular, sem dúvida, livro ímpar esse DESERDADOS, com certeza.
    Sérias questões sociais também são levantadas e expostas com primor e maestria no livro em questão que cuida da tragédia do sertanejo cearense na Amazônia, durante o famigerado ciclo da borracha.
    Mas, deixemos tal assunto para outra ocasião, pois não pretendo, de forma alguma, esgotar o gentil leitor e a prestimosa leitora. Ademais, está fazendo frio danado, dezoito graus centígrados, aqui em Araruama, beira da lagoa, noite escura, vento de chicote, um princípio de chuva. Então, ao cafezinho com aipim na manteiga e depois um bom livro. Até mais.                 
Jaime

quinta-feira, 16 de junho de 2016

UM AUTOR MACROCÉFALO

      Na vereda umbrosa vinda ter ao soturno aceiro que rastilhava através do seringal ubérrimo, Torquato de há muito esperava, acocorado, sob crises veementes, num misto de infrenes exortações masculinas e de íntimas revoltas contra o seu vilíssimo plano perpetrado e prestes a ultimar-se. Assemelhava-se a um gato selvagem à espreita da vítima incônscia : carecia de abater o incauto pervagante daquele atalho para cevar a fome sexual de muitos anos na pelanganosa estrutura de uma velha esclerosada, que era monopólio de outrem.


    Amigo leitor, deixemos, por enquanto, o infame Torquato na sua desprezível tocaia, assim poderei fornecer elementos para que se entenda o monstruoso ardil.
    O trecho acima é parte do romance DESERDADOS, escrito por Carlos de Vasconcelos e publicado no ano de 1921, por Leite Ribeiro & Maurilo, Rio de Janeiro. Na verdade, trata-se de uma raridade bibliográfica, o que é uma pena, pois é obra extremamente singular e que, certamente, merece ser conhecida, lida e difundida, não só pela ousadia da linguagem, arrebatamento das ações, assombro e surpresa das imagens, mas também pelo que apresenta de estupenda poesia e chocante tragédia. Dizer que a ação se desenrola na Amazônia não faz do livro algo especial. Entretanto, a forma de dizer constitui-se em rara novidade, chocante beleza, suave e dolorosa poesia. O homem apanhado no seu contato direto com aquele inferno verde, que, aliás , continua infernal. Ali, vamos encontrar o homem matamorfoseado em besta humana, em terrível e sanguinário lobisomem. O homem que mata sem medo, sem remorso, por motivos vis e de pequena fatura.         
    Na cena em destaque, Torquato arma tocaia para assassinar outro seringueiro de nome Juca (Conduru), simplesmente para se apossar sexualmente da companheira do infeliz. Torquato bestializa-se na fome sexual de muitos anos , já que naquele tempo  a presença da mulher na Amazônia era algo raríssimo. E não pense o caro leitor que a mulher desejada, de nome Joana, era nova, bonita de formas, desejável. Não, nada disso. Tratava-se, no caso, de uma velha escrofulosa, esquelética e com maus dentes, sarnosa de timbres e antipática de atitudes.
    Efetivamente, Torquato acerta Juca com um balaço no peito e ele cai da pirambeira que atravessava no meio da mata. Entretanto, quando corre para o sitio da vítima e diz que o companheiro sofrera um acidente fatal, Joana compreendera logo a mentira do assassino, mas temendo-lhe a ferocidade por ânsia erótica e ao mesmo tempo o leilão em que seria posta pelo dono do seringal logo que se divulgasse a notícia da morte do seu amásio, hesitava se devia dar-se ao embusteiro ou qual a maneira mais acerada de agir, sob tão críticas circunstâncias.
    O fato é que Juca mesmo ferido acaba surpreendendo o facínora no momento da danação orgástica e tem início uma luta corporal cuja riqueza de detalhes deixa entrever a maestria do autor , bem como a  estranheza do seu linguajar. 
    Por fim, o sangrento duelo termina com a morte dos contendores que despencam sobre um precipício. É que Conduru e Torquato haviam caído em um socalco do barranco, fisgados, com as facas empunhadas, o braço de um sustendo o  lance brutal do outro que, trespassado, havia também embebido até o cabo o punhal oponente. Joana enlouquecera, transudada em sentinela maldita do crime...
   Observe, paciente leitor, a linguagem ímpar do Sr. Vasconcelos, algo realmente diferente. O inusitado que consegue arrancar de tanta brutalidade e miséria humanas é, de fato, impressionante.  
       Selecionamos outros trechos espetaculares. Mas, por enquanto, fiquemos por aqui. Prometo ao leitor amável continuar em breve.
Um fraterno abraço.